Nesse cenário vemos como a combinação entre baixa tecnologia e baixa participação social criam um ambiente de desconfiança e desigualdade e a luta por manutenção de identidades escala até gerar auto-isolamento.
Era como voltar no tempo. Casas de tijolos, ruas de terra e brita, uns carros velhos e barcos com motor a gasolina. Aos olhos de Betina, nada na vila havia mudado desde que partiu para a aventura na cidade grande. Tudo exatamente como ela se lembrava. E tudo exatamente como estava representado no gêmeo digital que a Companhia havia desenvolvido. Mas nem o estado da arte da tecnologia de 2040 seria capaz de pintar algo ao mesmo tempo tão vivo e tão desbotado. A real é que Betina detestava o lugar. E, o que é pior, ela tinha certeza que o lugar detestava ela.
Betina checou o sinal da rede nos óculos e, novamente, confirmou que ela estava offline. Sem rede, sem assistente, sem realidade aumentada. Deus me livre de ter um piripaque. Sua biometria não teria como ser enviada ao plano de saúde e, sem uma notificação de emergência, o máximo que ela teria era acesso a uma rezadeira.
“Mas olha só quem está por aqui. Quem é viva sempre aparece.”
Carla estava sentada no batente de uma das casas no centro da vila. A voz da velha amiga ecoou pela rua e, como invocando a vizinhança, outros moradores brotaram nas janelas e alpendres, pararam de varrer a rua para olhar a forasteira sem muito esforço para discrição.
“Já vou avisando que não tem rede, graças a Deus.” Betina sorriu com um sorriso amarelo e tirou os óculos já não tão inteligentes no momento.
“Oi, Carla. Tudo bem? Quanto tempo.” Era o máximo que podia dizer sem despertar sentimentos e, pior, atiçar a curiosidade do povo da vila. “Bom te ver.”
“Oito anos”, disse Carla descendo os batentes até o meio da rua. No fim, venceu o sorriso. “Bom te ver. Está perdida?”
As duas começaram a subir a rua, como nos velhos tempos. Havia algo estranho no ar. Não é que a vila estivesse necessariamente mais pobre. Mas havia menos gente, menos crianças e menos idosos. Isso o gêmeo digital também não capturou. Por mais dados que tivesse da vila, o fator humano ainda escapava a simulação. A vila estava morrendo.
“Eu trabalho para uma usina de energia. A gente está prospectando lugares para criar uma nova planta. Solar, eólica, marés. Mas tudo na costa, sabe? Offshore é como a gente chama.” Instintivamente, Betina tentou projetar uma holotela a partir de seu relógio, mas uma pequena exclamação vermelha lembrou mais uma vez que não havia sinal disponível.
“Deixa eu te mostrar”, disse Betina e sacou do bolso um folder da sua empresa.
“Não, obrigado”, disse Carla espalmando as mãos de forma abrupta. “A gente não está interessado.”
“A gente?”
“A gente.”
“Mas você nem sabe o que eu estou querendo oferecer”, disse Betina segurando o folder, com uma certa esperança que a amiga quisesse lhe escutar. “Isso tem a ver com a minha partida da vila?”
“Tem mais a ver com a sua volta”, disse Carla.
“Você é da cidade. Nasceu aqui, mas foi para fora e agora quer trazer a cidade para cá. Trazer os hotéis, os robôs, a vida moderna. Usina offshore. A energia que você gera não é pra cá. É pra fora. O que sobra é a força pra esmagar o jeito como a gente é por aqui.”
“Carla, não dá pra gente ser do jeito que a gente é por aqui.” Betina se arrependeu imediatamente do que disse, mas era a mais pura verdade. Pelo menos ela assim acreditava. E por isso ela teve que partir.
Betina deixou-se conduzir por Carla. As duas passaram da praça da igreja e já chegavam na orla. O sol estava forte naquela manhã de verão. Havia um único bar aberto, uma loja de roupas de banho vazia e ninguém na areia. As poucas pessoas na rua paravam seus afazeres para olhar a dupla caminhando.
“A gente nunca vai saber”, disse Carla. “Mas gente da cidade como você já veio aqui. Outras indústrias. Turismo. Biotecnologia. O que ficou pra gente foi turistas fazendo algazarra, bebendo e mexendo com o povo. Teve vazamento de lixo biológico quase matando a praia. Um tempo desses botaram metaverso aqui. Os meninos ficaram todos viciados e só viam coisa que não presta. A gente cortou a fibra depois do boato que uma onda gigante ia inundar a cidade. Sem falar nas propagandas perseguindo a gente.”
“Carla, a vila está morrendo. Eu não tinha percebido isso antes na simulação que a Companhia rodou, mas agora está muito claro pra mim.” Betina tentou, mais uma vez, acionar o seu holoprojetor para mostrar o gêmeo digital da cidade, mas o povo da vila devia ter instalado um bloqueador.
“E é o seu progresso que vai salvar a gente?” Carla estava visivelmente irritada.
Um silêncio profundo tomou o espaço entre as duas. Segundos infinitos se passaram.
“Pode ser que dessa vez seja diferente”, disse Betina olhando nos fundos dos olhos da amiga.
“Não pode?”
“A gente ia precisar ser muito diferente.”
“A gente quem?”
“O povo da vila e o povo da cidade”, disse Carla. “Eu e você.” Deu as costas e saiu.
“Eu vou ficar uns dias por aqui”, disse Betina num tom alto o suficiente para a vila inteira escutar.
“As coisas podem ser diferentes.” Dessa vez as coisas seriam diferentes. A simulação da vila mostrava que as coisas podiam ser diferentes. E na cabeça de Betina, a simulação de uma nova chance com Carla também mostrava que tudo podia ser diferente.
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