Nesse cenário vemos como a combinação de alta tecnologia e baixa participação social habilitam a sobrevivência de comunidades vítimas de mudanças climáticas ao custo de sua desconexão com suas raízes culturais e independência.

Antônio gostava de sentar na beira da plataforma para olhar o sol se por atrás da vila flutuante. Era lindo e calmo. Todo fim de tarde ele puxava uma cadeira, colocava perto da pequena murada e esperava a chegada da neta Rebeca, que nunca faltava ao compromisso. Hoje ele fez diferente. Colocou a cadeira voltada para o que restou da praia e viu a menina chegar correndo, ainda cercada pelos aplicativos da escola circulando ao redor de sua cabeça. Quem diria, Antônio pensou que ele viveria para ver o sorriso de uma neta. Quem diria que eles viveriam para ver o sorriso de qualquer criança da Vila Nova. A sobrevivência, no entanto, veio ao custo da memória. Ainda que estivesse feliz de ter uma casa, uma família, netos e vizinhos, havia pouco que Antônio reconhecesse no lugar. Viver numa vila flutuante, a 200 metros da praia onde cresceu, era demais para seu velho coração.

“Vovô, hoje eu vi uma foto do seu barco na aula de história”. Rebeca saltou no colo do avô, que riu com um gemido e alguns estalos nos joelhos. A neta ia fazer 10 anos, nasceu poucos dias antes da remoção da comunidade no programa Recomeço no Mar. Não foi fácil convencer os pais da menina a ficarem. Mas a proposta era boa. Uma vila inteira impressa rapidamente para abrigar os refugiados. As casas eram iguais e meio sem graça, mas energia, internet, educação e até uma renda básica estavam inclusas no programa. Melhor que ter que começar a vida do zero em outra praia e, pior, esperar que o clima e o mar engolissem a nova vila novamente. “Era diferente. Pequeno. E ficava em cima da areia na frente de uma casa na areia também. Como fazia pra tirar o barco da areia?”
 
Antônio deu uma risada. A neta não sabia o que era a vida no continente. Tinha pés de marinheiro, como diziam antigamente, e a ideia de supermercado lhe era totalmente estranha. “Naquela época, a gente guardava o barco na areia. A gente saia de casa, puxava o barco até a água, ia pescar de manhãzinha e voltava de tarde. Aí puxava o barco de volta pra areia pra ele dormir.”

O rosto de Rebeca era de total surpresa e Antônio já esperava a pergunta desde o começo da explicação. “Por que?”
 
Na verdade, Antônio não sabia o porque. Era assim que faziam naquele tempo, até pouco antes da crise climática. Aí o mar foi invadindo, invadindo, até aqui não tinha mais areia para atracar o barco. A vila começou a usar tocos, depois boias, e depois veio o Programa. “É que naquele tempo a gente usava barcos e ficavam cansados de ficar nadando o tempo todo. Eles precisavam dormir na praia um pouquinho. E a gente também ficava cansado de ficar no mar o tempo todo. A gente ia pra casa na praia pra descansar.”
 
“Hoje a gente mora no mar. O senhor cansa de ficar no mar, vovô?”

“Eu já me acostumei”, disse Antônio. Mas a verdade é que de vez em quando cansa sim. Não pelo balanço da maré sem ondas, barradas pelo recife de concreto alto há algumas centenas de metros dali. Nem tanto pelo contato limitado com o resto do mundo. De novo, não faltava comida, ou energia, e a Vila tinha um posto de saúde e o médico morava com eles. A vida de refugiado já era difícil o suficiente para, ainda por cima, não ter apoio do governo. O que faltava era a terra. Vida de pescador é no mar, diziam. Mas agora ele sabia que não era. A vida de pescador era voltar do mar. Ir pra casa, cuidar do barco, tratar o peixe, vender no mercado. Vida de pescador era competir pela melhor história, a mais mentirosa. Era criar os filhos e os netos ensinando a costurar a rede. Agora não tinha praia, não tinha barco, não tinha pesca. Não faltava nada, mas faltava tudo. Antônio olhou pra neta e os olhos se encheram de lágrimas. Em parte com saudade de uma vida que não existia mais, e em parte por poder ver a neta crescer.
 
“Vovô? Tá triste?”
 
“Triste eu ficaria se você não estivesse aqui. Vem cá. Deixa eu te contar mais de como era viver na praia.”