Nesse cenário vemos como a combinação de alta tecnologia e alta participação social em 2040 criam uma nova forma de governança digital em uma vila de pescadores, habilitando novas potencialidades e novos desafios.

A sede da associação já estava cheia de gente quando Ambrósio chegou para a reunião. Os adultos conversavam de pé, já discutindo os termos da proposta de venda da pesca. A maioria dos mais velhos já tinham garantido uma cadeira de plástico ou de vime, e se divertiam com a correria das crianças disparando para lá e para cá, brincando de “seu rei mandou dizer” com a IA comunitária. Ambrósio não era mais jovem, mas ainda não tinha a prioridade para sentar. Não que ele pudesse.

Enquanto ria da brincadeira dos netos da comunidade, ele se ocupava de um dos núcleos defeituosos da Assistente da Comunidade. A máquina já estava mais do que cansada, depois de quase dez anos rodando sem parar. Quando ela chegou, lá pelos idos de 31 ou 32, foi como uma bênção para a vila. A “Prefeita” virou literalmente o centro da vila, coordenando a produção de pescado e a governança da comunidade. Fora que uma geração inteira aprendeu a ler e fazer conta com ela. Mas hoje, a Prefeita estava cansada.
 
“E aí, seu Ambrósio? Tem jeito pra Prefeita?” Marcela já mostrava sinais de nervosismo. Ela tinha pedido que Ambrósio convocasse a assembleia para simular uma nova estratégia para a vila. Ele tinha passado para ela um relatório em que a própria Prefeita apontava que seu poder de simulação tinha chegado no limite. Além disso, Ambrósio tinha ouvido falar que uma vila próxima tinha conseguido uma Assistente mais moderna e temia que a Prefeita já não conseguisse negociar a produção tão rápido quanto as concorrentes.

“Jeito sempre tem, Marcela”, disse Ambrósio. “Mas ‘daquele’ jeito, né?” Com uma pancada gentil num dos conectores, os tubos da Prefeita começaram a bombear líquido refrigerante restaurando a capacidade máxima da central. “Pronto. Agora ela tá com tudo. Dá até pra rodar Escravos de Jó.” O riso de Ambrósio encontrou o olhar irritado de Marcela e logo se dissipou. “Olha, Marcela, dá pra rodar. Mas metade dos mercados GPT já não tem suporte pra interface da Prefeita.” Mais uma vez, Ambrósio encontrou o olhar de Marcela. E sem dizer mais nada, tirou a assistente do modo de manutenção e colocou a Prefeita em capacidade máxima.
 
Bom dia, comunidade. O holograma de um rosto feminino se projetou a alguns centímetros acima do totem que servia de corpo para a Assistente.
 
“Bom dia, Prefeita”, gritaram as crianças. Alguns adultos rindo e murmurando com eles. Ambrósio olhou para Marcela. Já era noite.

“Prefeita, simule o prospecto de vendas de pescado desse ano, cruze com a receita de turismo e artesanato”, disse Ambrósio. Um som leve, como uma sineta, tomou conta do salão da sede. Ambrósio e Marcela se entreolharam. Os números no holograma eram bons, mas não bons o suficiente. “Agora traga dez sugestões de modelos de assistente comunitário compatíveis com o padrão de mercados GPT atual e que caibam no nosso orçamento. Inclua modelos novos e de segunda mão. Dê uma margem de preço excedente que possa ser abatida a prazo com risco mínimo.” Imagens de vários modelos de assistentes, a maioria de segunda mão, se formaram no holograma. Ambrósio suspirou. Tecnologia básica era cada vez mais barata, mas se manter compatível com o mercado era cada vez mais caro. E mesmo uma vila de pescadores dependia cada vez mais de mercados automatizados para tirar seu sustento. “Olha, Marcela, a gente pode trocar a Prefeita por um assistente de segunda mão e se manter por mais três anos, mas não vamos conseguir crescer. Ou a gente pode apertar o cinto e por uns dois anos e comprar uma Prefeita nova em folha e em cinco anos a gente dobra a receita.”
 
“Vamos votar”, disse Marcela.
 
“Prefeita, abre o modo de debate e mediação.” Elaborando argumentos. “A noite vai ser longa.”